sábado, 18 de setembro de 2010

LITERATURA DO VALE - NINGUÉM CONHECE NINGUÉM

NINGUÉM CONHECE NINGUÉM – RENATO CALDAS (1980)
TERRA DE ORIGEM: ASSU/RN
DEDICATÓRIA: SEBASTIÃO ALVES MARTINS

Senhor: eu não credito
Que ninguém escute o grito
De angústia que a fome tem.
Não quero saber quem foi:
Que inventou o perdoe...
Se negando fazer o bem.

A espécie humana rasteja,
Sem saber o que deseja
Nem mesmo pra onde vai...
É marcha hostil da matéria
Na senda vil da miséria,
Caminha tropeça e cai.

Não sei no mundo o que fui
Fui talvez Edgar Poe...
Um Agostinho... Um Plutão...
Nos festins da inteligência,
Mergulhei a consciência
E o vício estendeu-me a mão.

Na estrada dos infelizes,
Na confusão dos matizes,
Nascem as flores também!
Sim, nos cérebros dos pobres
Há pensamentos tão nobres...
Ninguém conhece ninguém.

Fui nômade! Aventureiro,
Fui poeta seresteiro,
Um lovelace também!
Amei demais as mulheres
E procurei nos prazeres,
Manchar a face do bem.

Hoje, sinto a claridade,
Tenho, pois, necessidade
De meu passado esquecer.
Pouco importa os infelizes
A mancha das cicatrizes...
Se deixarem de doer.

Já viu lavar a desgraça?
Ou afogar na cachaça
A vergonha... a precisção?
É a forma conveniente
De tornar-se indiferente...
Podendo estender a mão.

Uma esmola por caridade:
É a voz da humanidade,
Morrendo de inanição
Não diga nunca perdoe,
Não queira saber: quem foi!
Esse alguém... é vosso irmão.

No poema, o eu-lírico relata suas visões acerca da fome difundida pelas camadas sociais menos elevadas e privilegiadas. A princípio, uma atitude comumente encontrada por aqueles que decidem recorrer à ajuda alheia é comentada pelo autor e, tendo suas respostas fortemente criticadas. Ele demarca, ainda, uma característica social que se reflete desde seu tempo, até os dias atuais, isto é, ele relata a avidez pela matéria do homem, procurando usufruir e ampliar ainda mais riquezas, causando miséria para os outros. Uma parte interessante do poema, que possui uma intertextualidade fértil, está na descrição do que possivelmente o eu-lírico poderia ser, citando nomes que marcaram o espaço ao qual o poema fora escrito. Talvez para trazer mais o eu-lírico para uma proximidade com os leitores, o autor utiliza de recursos de vida aos quais a maioria de nós anexa ao cotidiano: a procura nos prazeres. O pobre, ainda, é inferido como alguém de pensamento nobre, enquanto o nobre, pelas passagens, é tido como alguém de pensamento pobre, ocasionando uma ironia. O término, por sua vez, novamente retoma a expressão inicial das respostas para com os pobres, utilizando-se das idéias do cristianismo para familiarizar a relação de proximidade entre componentes de ambas as classes sociais, provocando, por outro ângulo, mais uma crítica forte para a atitude citada.